quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Um poema e um trecho. Outro poema, nenhum desfecho.

... O tédio dos radidiotas e dos aerochatos,
De todo o conseguimento quantitativo dessa vida sem qualidade,
A náusea de ser contemporâneo de mim mesmo -
E a ânsia do novo novo, de certo verdadeiro,
De fonte, de começo, de origem.

A pedra no anel errado no teu dedo
Como fulgura na minha memória,
Ó pobre esfinge da aristocracia burguesa conservada em viagem!
Que vagos amores escondias na tua elegancia verdadeira
Tão falsos, pobre iludida lúcida,
Encontrada a bordo desse navio, como todos os navios!

Tomavas cocaína por superioridade ensinada,
Rias dos velhos maçadores menos maçadores que tu,
Pobre criança orfã de pai e mãe
Pobre-diabo meio flapper, tão [?transtransviada?]!
E eu, o moderno que não sou, eu que consinto
Nos arredores de minha sensibilidade as tendas dos ciganos,
De toda a modernidade papel-moeda;
Eu, incongruente e sem esperanças
Passageiro como tu no navio, mas mais passageiro que tu,
Porque onde tu és certa eu sou incerto,
Onde tu sabes o que és eu não sei o que sou e sei que não sabes
                                                                                    [o que és,

E entre as danças tocadas ad nauseam pela banda de bordo
Debruço-me sobre o mar nocturno e tenho saudades de mim.
Que fiz eu da vida?
Que fiz eu do que queria fazer da vida?
Que fiz eu do que podia ter feito da vida?
Serei eu como tu, ó viajante do Anel Afrodisíaco?
Olho-te sem te distinguir da matéria amorfa das coisas
E rio no fundo do meu pensamento oceânico e vazio.

No quintal da minha casa provinciana e pequena -
Casa como a que têm milhões não como eu no mundo -
Deve haver paz a esta hora, sem mim.
Mas em mim é que nunca haverá paz,
Nem com que se faça a paz,
Nem com que se imagine a paz...
Porque então sorrio eu de ti, viajante superfina?

Ó pobre água-de-colônia da melhor qualidade,
Ó perfume moderno do melhor gosto, em frasco de feitio,
Meu pobre amor que não amo caricatural e bonita!
Que texto para um sermão o que não és!
Que poemas não faria um poeta verdadeiro sem pensar em ti!

Mas a banda de bordo estruge e acaba...
E o ritmo do mar homérico trepa por cima do meu cérebro -
Do velho mar homérico, ó selvagem deste cérebro grego,
Com penas na cabeça da alma,
Com argolas no nariz da sensualidade,
E com consciência de meio-manequim de ter aspecto no mundo.

Mas o facto é que a banda de bordo cessa,
E eu verifico
que pensei em ti quando durou a banda de bordo,
No fundo somos todos nós
Românticos,
Vergonhosamente românticos
E o mar continua, agitado e calmo,
Servo sempre da atenção severa da lua,
Como, aliás, interrogo o sorriso com que me interrogo
E olho para o céu sem metafísica e sem ti... Dor de corno...

                              Álvaro de campos, heterônimo de Fernando Pessoa. 

[...] A jornada entrou e parecer-me enfadonha e extravagante, o frio incômodo, a condução violenta, e o resultado impalpável. E depois — cogitações do enfermo — dado que chegássemos ao fim indicado, não era impossível que os séculos, irritados com lhes devassarem a origem, me esmagassem entre as unhas, que deviam ser tão seculares como eles. Enquanto assim pensava, íamos devorando caminho, e a planície voava debaixo dos nossos pés, até que o animal estacou, e pude olhar mais tranquilamente em torno de mim. Olhar somente; nada vi, além da imensa brancura da neve, que desta vez invadira o próprio céu, até ali azul. Talvez, a espaços, me parecia uma ou outra planta, enorme, brutesca, meneando ao vento as suas largas folhas. O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro: dissera-se que a vida das coisas ficara estúpida diante do homem.

Caiu do ar? destacou-se da terra? não sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me uns olhos rutilantes como o sol. Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano, porque os contornos perdiam-se no ambiente, e o que parecia espesso era muita vez diáfano. Estupefato, não disse nada, não cheguei sequer a soltar um grito; mas, ao cabo de algum tempo, que foi breve, perguntei quem era e como se chamava: curiosidade de delírio.
— Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga.
Ao ouvir esta última palavra, recuei um pouco, tomado de susto. A figura soltou uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão; as plantas torceram-se e um longo gemido quebrou a mudez das coisas externas.
— Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma. Vives; não quero outro flagelo.
— Vivo? perguntei eu, enterrando as unhas nas mãos, como para certificar-me da existência.
— Sim, verme, tu vives. Não receies perder esse andrajo que é teu orgulho; provarás ainda, por algumas horas, o pão da dor e o vinho da miséria. Vives: agora mesmo que ensandeceste, vives; e se a tua consciência reouver um instante de sagacidade, tu dirás que queres viver.
Dizendo isto, a visão estendeu o braço, segurou-me pelos cabelos e levantou-me ao ar, como se fora uma pluma. Só então pude ver-lhe de perto o rosto, que era enorme. Nada mais quieto; nenhuma contorção violenta, nenhuma expressão de ódio ou ferocidade; a feição única, geral, completa, era a da impassibilidade egoísta, a da eterna surdez, a da vontade imóvel. Raivas, se as tinha, ficavam encerradas no coração. Ao mesmo tempo, nesse rosto de expressão glacial, havia um ar de juventude, mescla de força e viço, diante do qual me sentia eu o mais débil e decrépito dos seres.
— Entendeste-me? disse ela, no fim de algum tempo de mútua contemplação.
— Não, respondi; nem quero entender-te; tu és absurda, tu és uma fábula. Estou sonhando, decerto, ou, se é verdade, que enlouqueci, tu não passas de uma concepção de alienado, isto é, uma coisa vã, que a razão ausente não pode reger nem palpar. Natureza, tu? a Natureza que eu conheço é só mãe e não inimiga; não faz da vida um flagelo, nem, como tu, traz esse rosto indiferente, como o sepulcro. E por que Pandora?
— Porque levo na minha bolsa os bens e os males, e o maior de todos, a esperança, consolação dos homens. Tremes?
— Sim; o teu olhar fascina-me.
— Creio; eu não sou somente a vida; sou também a morte, e tu estás prestes a devolver-me o que te emprestei. Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.
Quando esta palavra ecoou, como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o último som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição súbita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.
— Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim, o maior benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?
— Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este amor da vida, senão tu? e, se eu amo a vida, por que te hás de golpear a ti mesma, matando-me?
— Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.
Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha. Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, durante um tempo largo, ao longe, através de um nevoeiro, uma coisa única. Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos Impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que eu ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim,— flagelos e delícias, — desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura, — nada menos que a quimera da felicidade, — ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.
Ao contemplar tanta calamidade, não pude reter um grito de angústia, que Natureza ou Pandora escutou sem protestar nem rir; e não sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus a rir, — de um riso descompassado e idiota.
— Tens razão, disse eu, a coisa é divertida e vale a pena, — talvez monótona — mas vale a pena. Quando Jó amaldiçoava o dia em que fora concebido, é porque lhe davam ganas de ver cá de cima o espetáculo. Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a coisa é divertida, mas digere-me.
A resposta foi compelir-me fortemente a olhar para baixo, e a ver os séculos que continuavam a passar, velozes e turbulentos, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés; então disse comigo: — “Bem, os séculos vão passando, chegará o meu, e passará também, até o último, que me dará a decifração da eternidade.” E fixei os olhos, e continuei a ver as idades, que vinham chegando e passando, já então tranquilo e resoluto, não sei até se alegre. Talvez alegre. Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões; cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde. Ao passo que a vida tinha assim uma regularidade de calendário, fazia-se a história e a civilização, e o homem, nu e desarmado, armava-se e vestia-se, construía o tugúrio e o palácio, a rude aldeia e Tebas de cem portas, criava a ciência, que perscruta, e a arte que enleva, fazia-se orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da Terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo. Meu olhar, enfarado e distraído, viu enfim chegar o século presente, e atrás deles os futuros. Aquele vinha ágil, destro, vibrante, cheio de si, um pouco difuso, audaz, sabedor, mas ao cabo tão miserável como os primeiros, e assim passou e assim passaram os outros, com a mesma rapidez e igual monotonia. Redobrei de atenção; fitei a vista; ia enfim ver o último, — o último!; mas então já a rapidez da marcha era tal, que escapava a toda a compreensão; ao pé dela o relâmpago seria um século. Talvez por isso entraram os objetos a trocarem-se; uns cresceram, outros minguaram, outros perderam-se no ambiente; um nevoeiro cobriu tudo, — menos o hipopótamo que ali me trouxera, e que aliás começou a diminuir, a diminuir, a diminuir, até ficar do tamanho de um gato. Era efetivamente um gato. Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel...

           Trecho do Capítulo VII - O Delírio - de 'Memórias Póstumas de Brás Cubas', Machado de Assis.


Como essas palavras saíram de mim?
     
Não há um único espírito santo,
Não há um único espírito são,
são todos corrompidos por doeres cotidianos,
por decepções de suas estimativas e expectativas.

Que o homem cuide da alma,
e não a alma do homem.
Que a razão se extenda aos modelos que dela precisa,
mas que não se limite a prisão relativista.
Que a emoção se extenda até onde pode ser compreendida,
e não se enclausure em teorias para que seja repreendida.

E assim se faz o homem saudável.
Cade ele para cuidar disso tudo?
incomodou um outro por aí,
perdeu a chance, ganhou chaga

Ao Senhor Absoluto e bom, mas não com Jó.
Nem com muitos que perecem.
Onde está?! Tenha dó!
Não tem, ser vil, podre!
Olhe só como a modernidade acabou com as pragas...
bruxarias da ciência.

Mas ciência e sua magia
não tem poder de intervenção
na reflexão interna.

Eis o conflito:
Animus e Anima estão se debatendo,
se esfolando.
Preferia quando eles gemiam aquela sintonia de prazer
e o viver não era tedioso,
era puro gozo,
Era Romântico sem deixar de ser realista.
Era Pragmático sem deixar de ser idealista.
Mas na lista longa do dia-a-dia,
um medo de apatia resume tudo a palavras-chave
totalmente dispensáveis.
A fraquezas totalmente fantasiosas,
e a vontade do milagre faz o crer,
a fé,
existir com muito poder,
mas não ter um alvo mágico e mequetrefe,
um injusto imperador,
e sim uma lucidez
que guie de vez
e dê entendimento ao sorrir e a ferida,

o nome a isso serve aos cristãos,
aos islâmicos, aos judeus e as tribos de misticismos apagados
nas depreciações e condenações que passaram a borracha em seus documentos históricos.
Têm menção na lágrima de Abraão e no punho dos estoicos.
O nome dessa fé é fé em si.
Abstração que fortifique a segurança,
a veemência.

Mas fé que em si há uma barreira,
e que fúria só a deixa mais perdida na ribanceira,
e sensações diferentes em coisas corriqueiras,
assustam a carne fraca.
Daí sobra a alma opaca
que chora por algo novo na liberdade.
Que se conforta com algo velho na segurança.
Oh, Pai! Que esses dois - liberdade e segurança - não se confrontem como fazem
os militantes com os militares.
Os livres com os autoritários.
O futuro com os dinossauros.
Novamente vem exagero nesses termos...

Exagero pode ser um dos erros,
mas o que fazer para que continue a existir
o que existia com um dia-a-dia menos bagunçado
e nem por isso menos feliz.

Menos desnorteado e nem por isso menos livre.

Cada palavra que disse e ouvi,
de cada exemplo que dei e recebi,
o que ficou do que ouvi não foi o que foi falado por quem disse.
O que sobrou do que recebi não foi raiva pelo que dei.
Só não neguei.
E agora nego.
E o escuro vem mais o medo da cegueira...
Calma, monsieur, que é só aquele sono desgovernado.
Aquela fuga do acordado que quando acordado irrita.
Terror noturno xiita.

BOOOM,
Saí daqui. Voltei.
E os olhos viram num reflexo violento,
para depois voltarem ao chão cheios de desalento,
e eles doem.
E da fome não se sabe o que é náusea.
Da dor não se sabe o que é medo.
Do desencontro não se sabe a origem.
E mais uma vez essa maldita vertigem.
Carência, inocência ou demência?
Eis a questão.
questão nevrálgica ao viver,
e o mecanismo de se abster,
vem da falta de resolução da questão.
Não sobra nada além de dúvida e sermão.
Mas não quero Descartes nem Religião.
Ah, meu Zeus! Cadê o Trovão!?
Um choque de desfibrilador.
Um Rock embalado com ardor.

E belisca, a pupila continua fixa.
E se deita, a pupila se estreita.
Peita a si mesmo num dilúvio de amargura.
Machuca a si mesmo imaginando julgamentos fora de si.
E se arrepende.
E volta ao: 'tudo depende'.
E pende ao nada da certo.
E sente que é esperto.
Age como burro.
Que de tanta confusão, o sono e o lar seguro,
ora são tudo que deseja,
ora são a prisão do mundo que existe,
ora são a tortura do sofrer que persiste.

sinceramente, não sei.
só sei que resolverei,
foram poucos dias,
pouco enfrentei e muito fugi.
muito guardei e pouco reagi.
E do barroco ao simbólico simbolismo por um triz,
se fez significados perdidos sem diretriz.
Auto sem atriz.
Eu sem eu.
De novo, doeu.

João Gabriel Souza Gois, 08/08/2012


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