quinta-feira, 3 de abril de 2014

Anarchowissenschaft II

Mistura-se meu pêlo aos tecidos.
Meu orgulho à madeira.
Minha ambição à argamassa.
Meu desprezo à fumaça,
e sempre com juros, nunca de graça,
em coisa me transmuto.

Misturam-se as prioridades aos departamentos,
minha submissão aos estamentos,
a gasolina aos meus tormentos,
pela coisa que me tornei, me posiciono.

Agora, o Shopping já é meu templo.
Agora, como edifício me contemplo,
e, em trabalho perdendo meu tempo,
sou o que faço, coisa que faço,
deixo de ser agente do momento.

Mistura-se meu sexo ao gozo virtual,
mistura-se minha libido ao ilegal,
as dádivas da natureza ao crime,
e, como coisa, nada além do trabalho me redefine
e me inclina a uma nova forma, nada sublime,
de coisa diferente, mas ainda coisa.

Toda essa gente com opinião me lembra tijolos,
que parecem coesos mas despedaçam,
toda essa oposição me lembra barbantes,
que, nem os amantes vivos laçam,
e facilmente se embaraçam, só para barbantes se manterem,
mesmo que sem utilidade.

Misturo o que sou a minha utilidade,
reduzo o que crio à funcionalidade,
e nisso tudo, sendo coisa, objeto, me falta arte,
lirismo e anarquismo para limpar o materialismo
com que me defini.

De cá pra lá e de lá pra cá não mudei,
pois o plano de fundo me fetichiza em mercadoria,
e minha dor e rebeldia são resolvidas com produtos da psiquiatria.

O que pode ser um novo belo que me tire do patamar da coisa?
Uma nova política que de coisas trate?!
Erguer mais um novo-velho e material estandarte?!
E minha liquidez de matéria fluida que não cabe nessa infra-estrutura
morrerá por submissão dialética da cultura?

Sem um novo belo, o que chamamos de líder maquiavélico,
O homem lobo de si, não pode morrer.

Ah, amigos, não há revolução sem dança,
não há novos amores, sem novas transas,
não há novas criações sem novas idéias,
então, evolua você, evolucionista carcomido,
para tirar ensinamentos não mais da matéria, mas do espírito,
e perceber que sem uma nova beleza, a utopia não se renova em novo norte.

Acredito sim que a matéria é por si só forte,
mas o corpo não é só feito dela,
e os fenômenos que os vários espíritos, 
das várias maneiras de ser humano exprimem,
os olhares ocidentais, materiais, e analíticos reprimem.

Empírico em perigo,
li isso em algum lugar.
Se a nova proposta política, não tiver nova proposta estética,
nem adianta recomeçar a caminhar,
pois no novo ordenamento, o ideal-norte se enxerga da mesma maneira,
o belo do mesmo jeito que já era. Material como tudo nessa Era.

Se querem finalmente que as pessoas sejam pessoas,
e as coisas, coisas,
entendam que as pessoas agem além das coisas,
e o ciclo vicioso e virtuoso da mesma análise,
que não basta, apesar de pertinente,
(há renovação além da revolução permanente)
pode cessar para dar abertura,
não a uma nova-velha ditadura,
mas à pluralidade.

João Gabriel Souza Gois, 03/04/2014

Obs: Esse poema não é bem uma continuidade do Anarchowissenschaft, mas, na verdade, uma atualização. Que fique claro que, diferentemente do que já me posicionei, não me considero só anarquista, nem só marxista (sim, já oscilei em duas certezas aparentemente inconciliáveis). O que poderia soar mais contraditório a todos, principalmente às linhas da esquerda que exigem coesão e posicionamento definido, é, ao meu ver, o mais sensato. Consigo perceber contribuições ao meu pensamento em ideologias que, na hora da prática, entram em conflito. Percebi, há muito, que minha influência marxista é, em milhões de aspectos, maior do que a anarquista. Mas sempre serei o que lembrará da parte que o anarquismo complementa, em relação a pluralidade humana, que, implicitamente, muitos que se consideram marxistas desviam de maneira ortodoxa, dando centralidade sempre aos embates clássicos de boa parte da esquerda. Desde minha relação com o Candomblé, a minha maior dificuldade com as mais diversas filosofias contemporâneas é seu vício na verdade como valor. Existe um vácuo de linguagem e intervenção cultural que é preenchido, malemá, por setores menos materialistas, tanto de antropólogos por aí a fora, quanto por anarquistas convictos (não os intransigentes, e, sim, os abertos ao diálogo. Garanto que eles existem). A dificuldade está em perceber que, para além da revolução proletária ou das reformas de base, existe uma crise "espiritual" do ser humano, que mesmo tangindo os vários problemas materiais que percorrem por nosso tempo, envolve algo que começou com propostas de intevenção como as de 1968. Como anticapitalista, não posso dissociar esse problema das condições materiais presentes, de maneira alguma. Mas, antes mesmo da consolidação desse sistema, e mesmo durante seu fortalecimento nos anos mais vergonhosos de desigualdade, essa crise não se mostrou tão forte. Se, de alguma maneira, mesmo com aumento das desigualdades desde Thatcher e Reagan, houve avanço no campo dos direitos sociais durante todo o século XX, porque a humanidade do século XXI é lider em esquizofrenia, depressão, crise de ansiedade e etc.? O que de tão sagrado existia, desde os valores humanistas gregos, religiosos da idade-média, ou na liberdade civil/política do início da idade contemporânea, que sumiu do horizonte? Será que a libertação, só nas condições materiais, traria um novo belo? Eu creio que, antes de esperar o "fim da história" para comprovar, além da continuidade da corrida pelos direitos que nos são negados pelo capitalismo financeiro, precisamos construir, com nossas mãos, um novo conceito estético. Antes que seja tarde demais. É verdadeiro que a proposta desse conceito não está formulada (mas esse é o ponto, não deve ser, não por um único indivíduo), o problema maior não mora aí, na falta de concretude do conceito, mas sim na escassez do debate em relação a ele por quem mais deveria estar fazendo. E mesmo assim, as formas contemporâneas de protesto e de ocupação já mostram uma estética muito diferente, por exemplo, quando assumem uma posição frente a força do capitalismo global mas relacionando esse ativismo com o espaço, criando um convívio não só pela posição e pela identificação com programa, mas pela mesma vontade de viver na cidade sendo artista de rua ou morando em família, sem as privações que o alto custo de São Paulo e a obrigação às atividades produtivas impõem. Sou otimista com as novas propostas de se firmar frente ao absurdo que é a exploração cada vez maior que, com eufemismos, somos obrigados a engolir. E, apesar dessa crítica do poema à pequenez com a sensibilidade estética e com a pluralidade que muitos ortodoxos do marxismo reproduzem, eu sou tão simpático ao marxismo quanto ao anarquismo. Independente do que marxismo e anarquismo signifiquem hoje, nas muitas maneiras que temos que, capilarmente, estimular em todos que são engrenagem para o sistema uma consciência que, em termos de posicionamento e comportamento, eles adaptarão esse conhecimento da maneira que mais lhes convém, ambos ocupam posições centrais para essa noção e convívio, Permitindo relação com espaço, com a arte, em diversas intervenções e ocupações urbanas ou lutando por pautas clássicas contra o congresso conservador. Ambos contribuem. Por terem preocupações diferentes, cada um preenche uma parcela, na luta política e simbólica, da importância de se permitir que toda a potencialidade humana seja despertada e não assassinada ou fadada ao trabalho excessivo. Esse germe e as diferentes estratégias combinadas, têm muito a frutificar nos embates contemporâneos.

Obs2: Poema escrito após ler o prefácio e introdução de "Ajuda mútua: um fator de evolução" de Piotr Kropotkin.