sexta-feira, 28 de março de 2014

O Mercado vai ter que ceder à preguiça

   Há um debate muito forte nos dias atuais, no que concerne ao rumo dos direitos sociais. Há um movimento de garantia desses direitos em busca de uma equidade para além da igualdade dos direitos civis (estritamente individuais) e para além dos direitos políticos - garantidos, apesar das mais pertinentes críticas, de maneira progressiva, sem desconsiderar suas intermitências, do século retrasado para o atual. Ao mesmo tempo que a força produtiva decai - com o envelhecimento já presente nos países "desenvolvidos", e o envelhecimento latente dos "em desenvolvimento" - os compromissos assumidos na corrida pelos direitos sociais no século XX geram pressão para a assistência social - se não para algo muito mais radical que isso. Há pouco espaço para inovação política no caráter publicitário, demagogo e de classe das eleições das democracias modernas e a crise de representatividade é, após a crise de 2008, mais forte do que nunca no mundo. Esse impasse, entre uma população que cada vez mais clama por direitos sociais, e uma realidade econômica que cada vez mais perde força produtiva, parece não possuir solução. Em termos práticos, realmente não há: A conta da previdência e dos serviços públicos essenciais fica mais complicada de fechar com a diminuição progressiva das forças produtivas e, por conseguinte, com a queda da arrecadação fiscal. A crise de representatividade se mostra, não só nas ebulições sociais com as mais diversas, contraditórias e radicais pautas, mas também na sensação de insegurança em relação à garantia dos serviços públicos que as crises generalizadas do mercado globalizado - aliados a uma ortodoxia econômica amante da austeridade - fragilizam.

  O cenário todo pede inovação. Os poderosos todos a temem. Existem soluções práticas que, excluídos todos os interesses da disputa política, amenizariam a tensão da questão. Mas essa solução vai contra todo o movimento econômico predominante (tanto de interação dos agentes econômicos, quanto na leitura condicionada por universidades liberais de economia, como a da USP). Primeiro porque influi mais ainda na ideia de intervenção estatal na economia, algo mais razoável de se considerar antes da impregnação dos conselhos da dupla dinâmica Thatcher e Reagan no ideário econômico mundial. Segundo porque geraria um custo financeiro alto, não ao Estado ou à sociedade civil, mas ao novo, artificial, financeiro e monopolista Deus sucessor do Deus anterior, que, como bem disse Nietzsche, está morto. O novo Deus mercado.

Como resolver de maneira eficiente, por exemplo, o problema do desemprego gerado pelas crises e ainda estimular, de um jeito que nenhuma garantia de ampliação da cidadania do século XX conseguiu, maior tempo (e interesse) à participação política, à cultura, ao conhecimento ou à outros meios de investimento/de obtenção de renda, sem, por um ou outro itinerário, reduzir as horas de trabalho semanal? Se existem soluções, nessa questão, que excluam essa determinação, elas desdobram-se em custos sociais ou no orçamento do Estado. Praticando-a, o custo dessa mudança pesará majoritariamente nos ombros do mercado.

Há muitas críticas que poderiam ser apontadas à essa ideia de redução das jornadas de trabalho, que partem unicamente da origem religiosa - e não científica - do capitalismo, que naturaliza o consumo e o trabalho como fonte de enriquecimento moral. E essas, como bem assinalou Weber, calvinistas, não entram no debate como argumentos palpáveis para políticas públicas. Mas há outras com uma preocupação pertinente: o que ocorreria ao sistema econômico como um todo, se, via coerção, essas jornadas fossem reduzidas de uma hora pra outra, senão um colapso em série de empresas (principalmente pequenas e médias, estimulando o monopólio dos grandes empresários)? Há ai uma avaliação interessante, que nos volta às contradições das soluções dos problemas contemporâneos. A maneira mais interessante de estimular o pleno emprego, que estimula mercado interno e consumo, que por sua vez torna menos dependente a economia nacional do cenário mundial, traz como consequência imediata, uma crise local no próprio mercado interno.

Eu não insistiria na necessidade de diminuir as jornadas de trabalho, se esse problema imanente dessa política engolisse o próprio propósito que a concebeu. Mas há uma leitura implícita no modo de se enxergar a economia, cheio de pressupostos metafísicos da natureza humana, que sustenta essa crítica. De fato, a redução das horas de trabalho aumentará o custos das empresas, e as menos estáveis (justamente as menores, com mercados mais estreitos e justamente as que mais empregam no Brasil) serão as mais prejudicadas. Mas há também, a partir da redução, um aumento significativo do número de empregos. Via decreto, de maneira intransigente, essa redução causaria sérios problemas. A partir de um programa de políticas públicas bem dirigido, que acompanhe os anseios do mercado, e que procure, através das realidades diferentes de cada setor produtivo/consumidor, fazer essa reforma trabalhista de maneira gradual, que tivesse sim suas consequências, mas que evitasse trazer todas, em todos os setores, de uma vez. É preciso, junto à isso, existir um fundo público que injete dinheiro, ou pelo menos gere estímulo fiscal, nas pequenas e médias empresas lesadas, tanto para tapar a desigualdade perante as grandes corporações como para estimular mais concorrência e menos monopólio, amenizando, do jeito menos danoso à economia nacional e aos direitos dos cidadãos, os impactos mais severos da inflação - diferentemente do plano real que ruiu a industria nacional e facilitou a importação para atingir um índice de inflação razoável.

Obviamente que se há a real a intenção de se cortar pela metade a carga horária sem a redução do salário, só a magnitude da proposta já traria uma grande resistência. Mas, uma vez iniciada essa política, com esse tipo de intenção combativa, a opção mais preferível seria indução de cooperativas e de vários pequenos proprietários, priorizando a via do estímulo fiscal, do que apenas a livre e pura "injeção de capital em pequenas e médias empresas". Aliás, outras várias maneiras de conceber esse estímulo podem existir, com claros critérios de redução do monopólio, desde que se permita, reconheça e repense os erros dessa política antes ou enquanto ela gera externalidades piores que seu propósito. (Existe uma enorme diferença entre uma política econômica que, priorizando outros meios, ainda assim insira estímulos na iniciativa privada e o péssimo trabalho que o neoliberalismo vêm fazendo, pois se o foco desse estímulo privado forem as maiores geradoras de empregos e menos oligárquicas, ou seja, as pequenas empresas, a tendência seria, indiretamente, de uma maior distribuição de renda - o oposto do que o neoliberalismo gerou). Se a disputa política já torna difícil a redução de horas de trabalho sem redução de salário, ela também tornaria difícil que, via Estado, alternativas mais interessantes recebessem prioridade perante as de caráter puramente privado, ou seja, novamente: cooperativas ou, no caso de setores estratégicos e de alta necessidade de investimento, a estatização. Isso não exclui o fato de que essas opções alternativas devam ser a prioridade do que a iniciativa privada, mas, como setor produtivo atuante, principalmente as pequenas empresas têm também que, em alguma medida, serem reguladas por esse mesmo fundo ou política fiscal. Em outros termos, seria estimular o que o filósofo Vladimir Safatle chama de única coisa boa do capitalismo: a concorrência; visando estímulos maiores nos modos de produção que pudessem sugerir uma nova cultura econômica mais pautada na distribuição do que no crescimento.

O que, no cerne, é extremamente reformista, frente às possibilidades de nossa conjuntura e às outras reformas que implica para tornar essa redução de carga horária possível, se mostra extremamente revolucionário. Primeiro porque, para haver esse fundo que amenize as consequências diretas das reduções na hora de trabalho, seria necessário, antes de tudo, uma reforma tributária que permitisse condições materiais para sua concretização. Segundo porque, para haver essa reforma tributária que possibilita todo esse projeto, seria necessária uma reforma política com participação popular (não as pré-estabelecidas pelos já viciados, tanto nos privilégios do poder, como nos mecanismos de leitura de conjuntura).

Os únicos seriamente lesados, em ultima instância e no longo prazo, caso toda essa hipótese de política pública fosse posta em prática seriamente, incluído o fundo regulador, são os monopolistas do mercado financeiro. É o alto escalão do mercado. É o lobo de Wall Street. E eles reproduzem apenas austeridade, tornam universidades de economia mercadológicas e reprodutoras de conhecimento, levando-as ao limite da inutilidade para saída desse dilema e, após tornarem o Estado capacho de seus erros, o obrigando a assumir suas dívidas, retoma a passos lentos a economia, gera fuga de capitais em países "em desenvolvimento" e não arruma a bagunça gerada nas mais diversas conjunturas afetadas pela irresponsabilidade do individualismo econômico desenfreado.

No Brasil, por exemplo, desde Junho de 2013, de alguma maneira o desconforto foi mostrado na rua. Ele segue em menor escala nas manifestações contra a Fifa dispersas e ainda assim nacionais. Mas, ao mesmo tempo que essas pautas únicas e apartidárias apresentam boa resposta no que diz massificação e vitórias políticas, elas alegorizam o problema em ícones específicos, e cegam boa parte da opinião pública da interdependência que esses problemas têm em relação a um jeito de se pensar a economia, e um jeito de ser fazer política econômica. Mesmo sabendo dos abusos da Fifa - principalmente nos pontos que fere o Estado de Direito - o brasileiro se esquece que os juros que devemos ao mercado financeiro faria muito mais escolas e hospitais do que o dinheiro gasto na realização do evento. Tanto na dificuldade de encontrar a saída necessária para conciliar direitos sociais e impasses produtivos, quanto na raiz dos problemas que parecem isolados, o mercado se sobrepõe-se e impõe-se, se não oficialmente, subliminarmente, como principal responsável.

Mesmo que o futuro do nosso Estado, com a luta da sociedade organizada e não-organizada, se torne algo mais democrático e poroso, se não nos unirmos pelo fim da limitação que o mercado impõe à nossa capacidade de imaginação e criatividade política, todas as soluções advindas serão meramente cosméticas e fisiológicas. Em algum momento, principalmente nos mais caóticos que parecem emergir no horizonte contemporâneo, para haver adaptação social e institucional de todo o planeta às contradições do nosso tempo, o mercado vai ter que ceder. Em algum momento, os capitalistas perceberão que a saída pra nosso problema do nosso tempo não está no trabalho tão divinizado como foi até hoje, com seus horários definidos e seus compromissos exaustivos, mas no direito à preguiça.


João Gabriel Souza Gois, 28 de março de 2013

Obs: O Direto à preguiça é um livro escrito por um anarquista francês, de origem negra e cubana chamado Paul Lafargue, que se casou com a filha de Marx. .

Obs2: Um assunto um tanto diferente, mas que linka com o potencial e importância que a preguiça (ou melhor, para tirar o que há de pejorativo na palavra, o tempo para a vida pública) tem nesse texto, é o que trata um vídeo sobre economia que, apesar de tratar de um assunto diferente e de pesquisa econômica, reafirma a necessidade da autonomia e do tempo livre, num tom um tanto quanto publicitário, para melhor interação humana. (Link do vídeo)

Obs3: Algumas edições foram feitas dia 28 de setembro de 2014, com intenção de esclarecer alguns pontos em relação ao fundo regulador. Se assumir de esquerda e escrever algo que, em algum ponto diz: "o estado injetará dinheiro na iniciativa privada" parece, além de contraditório, nada novo. Mas há uma diferença fundamental entre o que ocorre hoje de fato e essa proposta que aqui trago: Hoje o Estado injeta só no mercado financeiro, ou seja, na "economia fantasma", mais de 40% do orçamento público com os gastos da dívida pública - ou seja, torra sem opção nem direcionamento. A proposta que trago - apesar de inacabada por não ser ainda uma política, mas um norte pra uma política pública - é muito mais republicana, no sentido etimológico da palavra. A intenção é apenas equalizar - e não engordar! - a consequência de uma outra política com outro fim que não só econômico, gerando condições que permitam a continuidade da economia dos empreendedores mais produtivos, menos monopolistas e só o faz por ser essa a responsabilidade do Estado; Que nem quando se vai construir o metrô e paga pelo terreno desocupado oficialmente - ou deveria pagar. E o estímulo - ou melhor, a compensação - tem, no que falei por iniciativa privada, o seu estrato mais baixo representado, ou seja, o constituído principalmente pelos empregadores menos exploradores (em teoria), a dos menos monopolistas. Minha proposta consiste em amenizar uma externalidade gerada pela própria política do Estado, e fazer isso via estímulo, com critério precisos como remessa de lucro mensal, por exemplo, pra saber se o estímulo é bem-vindo e, se for, em que proporção será dado. O que está estabelecido hoje é drenagem do dinheiro público por um setor improdutivo e monopolista: Os bancos. Isso, de estímulo, custaria muito menos que nossa dívida interna hoje custa. E não valeria a pena esse custo político, se essas horas livres se direcionassem única e exclusivamente pro entretenimento consumista. Porém, um urbanismo que pense no direito à cidade, um combate a especulação desnorteadora do planejamento urbano e políticas públicas realmente interessantes na área de educação e cultura seriam muito amplificadas com esse tipo de redução da carga de trabalho. Seria mais um ponto a se tocar, dentre todos que deveriam estar sendo tocados conjuntamente com ele para trazer o efeito esperado. No fim a interdependência é a única verdade: para tocar nesse assunto e ver relevância nele, deveríamos já estar num patamar sem dívida interna, ao menos almejando reformas de base e confrontando o interesse dos maiores lobistas. Ainda assim, por mais longínquo que pareça tudo isso que eu ponderei, acredito que essa reflexão contribui porque ninguém, quando relaciona envelhecimento da população e problemas com gastos públicos, inova em paradigmas ou consegue sair do problema eterno - ou como no exemplo das pautas ambientais - justamente porque não confrontam o "Culto Ao Dogma Neoliberal" que define o crescimento, e não a distribuição, como critério pra "progresso humano". O fato é que esse velho critério-PIB, junto com a cegueira generalizada no pensamento econômico desde os anos 80, só fez destruir a coisa pública e aumentar a desigualdade - e, consequentemente, a violência, abaixar o IDH e distorcer todas as coisas que, diferentemente do crescimento, incidem DIRETAMENTE sobre todos. O crescimento, quando muito, é percebido indiretamente, ou seja, é muito sugado antes de beneficiar a maioria da população.
~ A alteração no texto é, na verdade, uma inclusão: O 6º parágrafo é inteiro novo assim como essa observação.